Vamos investigar a origem da
morte. O pai da morte é o pecado. Se nunca houvesse pecado ninguém morreria. O
primeiro homem recebeu a lei de Deus, isto é, um preceito de Deus, com a
condição de que se o observasse viveria e se o violasse morreria. Não crendo
que morreria, fez o que o faria morrer; e verificou a verdade do que dissera
quem lhe dera a lei. Desde então, a morte. Desde então, ainda, a segunda morte,
após a primeira, isto é, após a morte temporal a eterna morte. Sujeito a essa
condição de morte, a essas leis do inferno, nasce todo homem; mas por causa
desse mesmo homem, Deus se fez homem, para que não perecesse o homem. Não veio,
pois, ligado às leis da morte, e por isso diz o Salmo: “Livre entre os mortos”
[Sl 87].
Concebeu-o, sem
concupiscência, uma Virgem; como Virgem deu-lhe à luz, Virgem permaneceu. Ele
viveu sem culpa, não morreu por motivo de culpa, comungava conosco no castigo
mas não na culpa. O castigo da culpa é a morte. Nosso Senhor Jesus Cristo veio
morrer, mas não veio pecar; comungando conosco no castigo sem a culpa, aboliu
tanto a culpa como a castigo. Que castigo aboliu? O que nos cabia após esta
vida. Foi assim crucificado para mostrar na cruz o fim do nosso homem velho; e
ressuscitou, para mostrar em sua vida, como é a nossa vida nova. Ensina-o o
Apóstolo: “Foi entregue por causa dos nossos pecados, ressurgiu por causa da
nossa justificação” [Rm 4,25].
Como sinal disto, fora dada
outrora a circuncisão aos patriarcas: no oitavo dia todo indivíduo do sexo
masculino devia ser circuncidado. A circuncisão fazia-se com cutelos de pedra:
porque Cristo era a pedra. Nessa circuncisão significava-se a espoliação da
vida carnal a ser realizada no oitavo dia pela Ressurreição de Cristo. Pois o
sétimo dia da semana é o sábado; no sábado o Senhor jazia no sepulcro, sétimo
dia da semana. Ressuscitou no oitavo. A sua Ressurreição nos renova. Eis por
que, ressuscitando no oitavo dia, nos circuncidou.
É nessa esperança que
vivemos. Ouçamos o Apóstolo dizer. “Se ressuscitasses com Cristo...” [Cl 3,1]
Como ressuscitamos, se ainda morremos? Que quer dizer o Apóstolo: “Se
ressuscitasses com Cristo?” Acaso ressuscitariam os que não tivessem antes morrido?
Mas falava aos vivos, aos que ainda não morreram ... os quais, contudo,
ressuscitaram: que quer dizer?
Vede o que ele afirma: “Se
ressuscitasses com Cristo, procurai as coisas que são do alto, onde Cristo está
assentado à direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o que está sobre a
terra. Porque estais mortos!”
É o próprio Apóstolo quem
está falando, não eu. Ora, ele diz a verdade, e, portanto, digo-a também eu...
E por que também a digo? “Acreditei e por causa disto falei” [Sl 115].
Se vivemos bem, é que
morremos e ressuscitamos. Quem, porém, ainda não morreu, também não
ressuscitou, vive mal ainda; e se vive mal, não vive: morra para que não morra.
Que quer dizer: morra para que não morra? Converta-se, para não ser condenado.
“Se ressuscitasses com
Cristo”, repito as palavras do Apóstolo, “procurai o que é do alto, onde Cristo
está assentado à direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o que é da
terra. Pois morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando
Cristo, que é a vossa vida, aparecer, então também aparecereis com ele na
glória”. São palavras do Apóstolo. A quem ainda não morreu, digo-lhe que morra;
a quem ainda vive mal, digo-lhe que se converta. Se vivia mal, mas já não vive
assim, morreu; se vive bem, ressuscitou.
Mas, que é viver bem?
Saborear o que está no alto, não o que sobre a terra. Até quando és terra e à
terra tornarás? Até quando lambes a terra? Lambes a terra, amando-a, e te
tornas inimigo daquele de quem diz o Salmo: “os inimigos dele lamberão a terra”
[Sl 79,9].
Que éreis vós? Filhos de homens. Que sois vós? Filhos de Deus.
Ó filhos dos homens, até
quando tereis o coração pesado? Por que amais a vaidade e buscais a mentira?
Que mentira buscais? O mundo.
Quereis ser felizes, sei
disto. Dai-me um homem que seja ladrão, criminoso, fornicador, malfeitor,
sacrílego, manchado por to- dos os vícios, soterrado por todas as torpezas e
maldades, mas não queira ser feliz. Sei que todos vós quereis viver felizes, mas o que faz o homem viver feliz,
isso não quereis procurar. Tu, aqui, buscas o ouro, pensando que com o ouro
serás feliz; mas o ouro não te faz
feliz. Por que buscas a ilusão? E com tudo o que aqui procuras, quando procuras
mundanamente, quando o fazes amando a terra, quando o fazes lambendo a terra,
sempre visas isto: ser feliz. Ora, coisa alguma da terra te faz feliz. Por que
não cessas de buscar a mentira? Como, pois, haverás de ser feliz? “Ó filhos dos
homens, até quando sereis pesados de coração, vós que onerais com as coisas da
terra o vosso coração?” [Sl 4,3] Até quando foram os homens pesados de coração?
Foram-no antes da vinda de Cristo, antes que ressuscitasse o Cristo. Até quando
tereis o coração pesado? E por que amais a vaidade e procurais a mentira? Querendo
tornar-vos felizes, procurais as coisas que vos tornam míseros! Engana-vos o
que descaiais, é ilusão o que buscais.
Queres ser feliz? Mostro-te,
se te agrada, como o serás. Continuemos ali adiante (no versículo do Salmo):
“Até quando sereis pesados de coração? Por que amais a vaidade e buscais a
mentira?” “Sabei” - o quê? – “que o Senhor engrandeceu
o seu Santo” [Sl 4,3].
O Cristo veio até nossas
misérias, sentiu a fone, a sede, a fadiga, dormiu, realizou coisas admiráveis,
padeceu duras coisas, foi flagelado, coroado de espinhos, coberto de escarros,
esbofeteado, pregado no lenho, traspassado pela lança, posto no sepulcro; mas
no terceiro dia ressurgiu, acabando-se o sofrimento, morrendo a morte. Eia,
tende lá os vossos olhos na ressurreição de Cristo; porque tanto quis o Pai
engrandecer o seu Santo, que o ressuscitou dos mortos e lhe deu a honra de se
assentar no Céu à sua direita. Mostrou-te o que deves saborear se queres ser
feliz, pois aqui não o poderás ser. Nesta vida não podes ser feliz, ninguém o
pode.
Boa coisa a que desejas, mas
não nesta terra se encontra o que desejas. Que desejas? A vida bem-aventurada.
Mas aqui não reside ela.
Se procurasses ouro num
lugar onde não houvesse, alguém, sabendo da sua não existência, haveria de te
dizer: “Por que estás a cavar? Que pedes à terra? Fazes uma fossa na qual hás
de apenas descer, na qual nada encontrarás!”
Que responderias a tal
conselheiro? “Procuro ouro”. Ele te diria: “Não nego que exista o que descias,
mas não existe onde o procuras”.
Assim também, quando dizes:
“Quero ser feliz”. Boa coisa queres, mas aqui não se encontra. Se aqui a
tivesse tido o Cristo, igualmente a teria eu. Vê o que ele encontrou nesta
região da tua morte: vindo de outros paramos, que achou aqui senão o que existe
em abundância? Sofrimentos, dores, morte. Comeu contigo do que havia na cela de
tua miséria. Aqui bebeu vinagre, aqui teve fel. Eis o que encontrou em tua
morada.
Contudo, convidou-te à sua
grande mesa, à mesa do Céu, à mesa dos anjos, onde ele é o pão. Descendo até
cá, e tantos males recebendo de tua cela, não só não rejeitou a tua mesa, mas
prometeu-te a sua.
E que nos diz ele?
“Crede, crede que chegareis
aos bens da minha mesa, pois não recusei os males da vossa”.
Tirou-te o mal e não te dará
o seu bem? Sim, da-lo-á. Prometeu-nos sua vida, mas é ainda mais incrível o
que fez: ofereceu-nos a sua morte. Como se dissesse: “À minha mesa vos convido.
Nela ninguém morre, nela está a vida verdadeiramente feliz, nela o alimento não
se corrompe, mas refaz e não se acaba. Eia para onde vos convido, para a morada
dos anjos, para a amizade do Pai e do Espírito Santo, para a ceia eterna, para
a fraternidade comigo; enfim, a mim mesmo, à minha vida eu vos conclamo! Não
quereis crer que vos darei a minha vida? Retende, como penhor a minha morte”.
Agora, pois, enquanto
vivemos nesta carne corruptível, morramos com Cristo pela conversão dos
costumes, vivamos com Cristo pelo amor da justiça.
Não haveremos de receber a
vida bem-aventurada senão quando chegarmos àquele que veio até nós,
e quando
começarmos a viver com aquele que por nós morreu.
Fonte: Sermões de Sto Agustinho
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