Primor da Alma

                                  S. LUIS MARIA GRIGNON DE MONTFORT

                        O GRANDE SEGREDO PARA SE CHEGAR A SANTIDADE

                                                   
                                                    INTRODUÇÃO

O Segredo e suas condições

1-  Eis aqui, ó alma predestinada, um segredo que o Altíssimo me confiou e que não pude encontrar em nenhum livro, antigo ou novo. Pelo Espírito Santo eu o confio a ti, contanto:

       que o não comuniques senão às pessoas que o mereçam  por suas orações, esmolas, mortificações, pelas perseguições sofridas, pelo seu zelo na salvação das almas e pelo seu desprendimento;
      que te sirvas dele para te tornares santa e celeste, por isso que só será grande este segredo para os que dele se utilizarem. Toma cuidado em não ficares de braços cruzados, sem trabalho; destarte meu segredo te serviria de veneno e seria a tua condenação;
     que todos os dias de tua vida agradeças a Deus o privilégio que te concedeu ensinando-te um segredo que não mereces conhecer. À medida que dele te servires nas ações ordinárias da vida. Avaliarás então o preço e a excelência que, a princípio, por causa da multidão e da gravidade dos teus pecados, dos apegos secretos à própria pessoa, só muito imperfeitamente conhecias.

A preparação para recebê-lo

2-  Antes de prosseguir, desejoso desse desejo diligente e natural de conhecer a verdade, reza devotamente, de joelhos, a Ave Maria, a Maris Stella e o Veni, Creator, pedindo a Deus a graça de compreender e saborear este mistério divino.
Devido ao pouco tempo que temos, eu para escrever e tu para ler, dir-te-ei tudo resumidamente.


Primeira  Parte

PAPEL DE MARIA EM NOSSA SANTIFICAÇÃO

A NECESSIDADE DE NOS SANTIFICARMOS POR MARIA

É da vontade de Deus a nossa santificação; é necessária, portanto

3- Imagem viva de Deus, resgatada pelo Sangue precioso de Jesus Cristo, a vontade divina em relação a ti, ó alma, é que te tornes santa como Deus nesta vida e gloriosa como Ele na outra.
Tua vocação, sem dúvida alguma, é a aquisição da própria santidade de Deus; para este objetivo é que devem tender todos os teus pensamentos todas as tuas palavras, ações e sofrimentos, todos os movimentos de tua vida; do contrário resistirás a Deus, deixando de fazer aquilo para que te criou e conserva atualmente.
Que obra admirável! A imundície em pureza! A criatura no Criador! O homem em Deus! Obra admirável! Eu o repito; mas de si mesma difícil e absolutamente impossível à natureza; só Deus, por uma graça, e graça abundante e extraordinária, o poderá conseguir; mesmo porque nem a criação de todo o Universo se lhe pode comparar.

Nossa santificação exige a prática da virtude.

4- Como farás, ó alma? Quais os meios que escolherás para subir aonde Deus te chama? Os meios de salvação e de santificação, conhecidos de todos, indicados no Evangelho explicados pelos mestres da vida espiritual, e praticados pelos santos, são necessários aos que se querem salvar e atingir a
perfeição: a humildade de coração, a oração contínua, o abandono à Divina Providência, a conformidade com a vontade de Deus.

Para a prática da virtude necessitamos da graça de Deus.

5- Para que bem nos utilizemos todos esses meios de salvação e de santificação, mister se nos faz o socorro e a graça de Deus, graça que, em maior ou menos grau, é a todos concedida; ninguém o duvide. Em maior ou menor grau, digo eu, porque Deus, ainda que infinitamente bom, não concede sua graça de modo igual a todos, muito embora dê  a todos a graça suficiente. A alma fiel a uma grande graça, pratica uma grande ação; com uma graça menor, pratica uma ação menor. O preço e a excelência da graça, dada por Deus e correspondida pela alma, fazem o preço e a excelência de nossas ações. São incontestáveis esses princípios.
Para achar a graça de Deus é necessário encontrar Maria.

6- Tudo enfim se reduz a encontrar-se um meio fácil de obter de Deus a graça necessária para a santificação; é o que te quero ensinar. Asseguro-te, porém que para achar a graça de Deus é necessário encontrar Maria.
porque maria nos é necessário? Porque somente Maria encontrou graça diante de Deus.

7- 1º) Somente Maria achou graça diante de Deus, tanto para si como para cada homem em particular. Os Patriarcas e os Profetas, todos os Santos da antiga lei não puderam encontrar essa graça.

Porque somente Maria é Mãe da graça.

8- 2º) Por isso que Maria foi quem deu o ser a vida ao Autor de toda graça, é que a chamamos Mãe da graça, Mater gratiae.

Porque somente Maria possui, depois de
Jesus, a plenitude da graça.

9- 3º) Deus pai, de quem procedem, como de sua fonte essencial, todo dom perfeito e toda graça, deu-lhe todas as suas graças; de modo que a vontade de Deus, como diz S.Bernardo, lhe é dada nele e com ele.

Porque somente Maria é a tesoureira
de todas as graças de Jesus.

10- 4º) Deus a escolheu para tesoureira, ecônoma e dispensadora de todas as suas graças; de sorte que todas as suas graças e todos os seus dons passam por suas mãos; e segundo o poder que Ela recebeu, como diz São Bernardino, Ela distribui a quem quer, como quer, quando quer e quanto quer, as graças do Pai Eterno, as virtudes de Jesus Cristo e os dons do Espírito Santo.

Porque para ter Deus por Pai,
é necessário ter Maria por Mãe.

11- 5º) Assim como, na ordem natural, uma criança tem que ter um pai e uma mãe, da mesma maneira na ordem da graça é preciso que um verdadeiro filho da Igreja tenha a Deus por pai e Maria por mãe; e si se gloria de ter a Deus por pai, não tendo por Maria a ternura de um verdadeiro filho, é um enganador que só tem por pai ao demônio.

Porque os membros de Jesus devem
ser formados pela Mãe de Jesus.

12- 6º) Desde que Maria formou o Chefe dos predestinados, que é Jesus Cristo, a Ela também compete formar os membros desse Chefe, que são os verdadeiros Cristãos; pois uma mãe não forma a cabeça sem os membros, nem os membros sem a cabeça. Quem quiser, pois, ser membro de Jesus Cristo, cheio de graça e de verdade, deve ser formado em Maria por meio da graça de Jesus Cristo(Católica), que nela reside em toda a plenitude, para ser plenamente comunicada aos verdadeiros membros de Jesus Cristo e aos seus verdadeiros filhos.

Porque é por Maria que o Espírito Santo
produz os predestinados.

13- 7º) Havendo o Espírito Santo desposado Maria, e tendo produzido nela, por ela e dela a Jesus Cristo, essa obra prima que é o Verbo encarnado; e como nunca a repudiou, continua a produzir todos os dias nela e por Ela de uma maneira misteriosa, porém verdadeira, os predestinados.

Porque é Maria que está encarregada de
alimentar as almas, e de fazê-las crescer em Deus.

14- 8º) Maria recebeu de Deus um domínio particular sobre as almas para nutri-las e as fazer crescer em Deus.( Santo Agostinho diz mesmo que neste mundo os predestinados são todos encerrados no seio de Maria, e que não nascem senão quando essa boa Mãe os gera para a vida eterna). Por conseguinte, como a criança tira todo o alimento de sua mãe, que o dá proporcionado à sua fraqueza, da mesma maneira os predestinados tiram todo o alimento espiritual e toda a sua força de Maria.

Porque Maria deve habitar nos predestinados.

15- 9º) Foi a Maria que Deus Pai disse:( In Jacob inhabita: Minha filha, habita em Jacó). Foi a Maria que Deus Filho disse: (In Israel Haereditare): Minha querida Mãe, tende vossa herança em Israel, quer dizer, nos predestinados. Enfim, foi a Maria que o Espírito Santo disse: (In electis meis mitte radices): Lançai, minha Esposa fiel, raízes em meus eleitos. Todo aquele, pois, que é eleito e predestinado tem a Ssma. Virgem habitando em si, quer dizer, em sua alma, e aí a deixa lançar raízes de profunda humildade, de ardente caridade e de todas as virtudes.

Porque Maria é o “molde vivo”
de Deus e dos Santos.

16- Maria é chamada por Sto. Agostinho, e é, com efeito, o molde vivo de Deus, forma Dei, o que quer dizer que foi nela somente que Deus feito homem foi formado ao natural, sem que lhe falte nenhum traço da Divindade; e é também somente nela que o homem pode ser formado em Deus ao natural, tanto quanto a natureza humana é disso capaz, pela graça de Jesus Cristo.
Um escultor pode fazer uma figura ou um retrato ao natural de duas maneiras: 1º) servindo-se de seu engenho, de sua fora, de sua ciência e dos instrumentos adequados para fazer essa figura de uma matéria dura e informe; 2º) pode lançá-lo numa forma. A primeira é demorada e difícil, e sujeita a muitos acidentes: muitas vezes basta um golpe de cinzel ou de martelo mal dado para estragar toda a obra. A segunda é rápida, fácil e suave, quase sem trabalho e sem esforço, contanto que o molde seja perfeito e reproduza o original, e que a matéria de que se serve, fácil de se manipular, não resista de maneira alguma à sua mão.
Molde perfeito em si mesmo, e que nos torna perfeitos em Jesus Cristo.

17- Maria é o grande molde de Deus, feito pelo Espírito Santo, para formar ao natural um Homem-Deus pela união hipotética, e para formar um homem Deus pela graça. Não falta a este molde nenhum traço da divindade; quem quer que nele se deixe manejar, nele recebe todos os traços de Jesus Cristo (1), verdadeiro Deus, duma maneira suave, proporcionada à fraqueza humana, sem muito trabalho e agonia; duma maneira segura, sem temor de ilusão, pois o demônio nunca teve e jamais terá acesso até Maria, santa e imaculada, sem sombra da menor mancha de pecado.

De uma maneira pura e divina.

18- Ó!  Alma querida, que diferença entre uma alma formada em Jesus Cristo pelos caminhos comuns dos que, como os escultores, se fiam na própria habilidade e se apóiam em seu engenho, e uma alma bem manejável, bem desligada, bem fundida, e a qual, sem nenhum apoio em si mesma, se lança em Maria, e aí se deixa manejar pela operação do Espírito Santo! Quantas manchas, quantos defeitos, quantas trevas, quantas ilusões, quanto da natureza, quanto de humano na primeira alma; e como a outra é pura, divina e semelhante a Jesus Cristo!

Porque Maria é o Paraíso e o mundo de Deus.

19- Absolutamente não há nem haverá jamais criatura na qual Deus seja maior, fora de si mesmo, do que na divina Maria, sem excetuar nem mesmo os Bem-aventurados, os Querubins, os mais altos Serafins, no próprio Paraíso. Maria é o Paraíso de Deus e o seu mundo inefável, no qual o Filho de Deus entrou para nele operar maravilhas, para guardá-lo e nele se comprazer. Ele fez este mundo para o homem peregrino; fez um mundo para o homem bem-aventurado, o Paraíso; fez, porém, um outro para si, a que deu o nome de Maria; mundo desconhecido de quase todos os mortais cá na terra, e incompreensível a todos os Anjos e Bem-aventurados, lá no céu, e que admirados de ver a Deus tão elevado e tão elevado e tão recuado de todos eles, tão separado e tão oculto em seu mundo, que é a divina Maria, exclamam dia e noite: Santo, Santo, Santo!

Para no qual o Espírito Santo faz entrar
nossa alma para aí encontrar a Deus.

20- Feliz, mil vezes feliz a alma, aqui em baixo, à qual o Espírito Santo revela o segredo de Maria, para conhecê-lo; e à qual ele abre esse jardim fechado, para aí penetrar; esta fonte selada, para dela tirar e beber a grandes sorvos a água viva da graça! Esta alma achará somente Deus, sem criatura, nesta admirável criatura; porém Deus ao mesmo tempo infinitamente santo e elevado, infinitamente condescendente e proporcionado à fraqueza dela.

20-1)Desde que Deus está em toda parte, pode-se achar em toda parte, mesmo no inferno; porém não há lugar algum onde a criatura o possa achar mais próximo de si e mais proporcionado à sua fraqueza do que em Maria, pois que foi para isso que ele aí desceu. Em todas as outras partes ele é o Pão dos fortes e dos Anjos; mas em Maria, ele é o Pão das crianças.

Porque Maria, longe de ser um obstáculo,
lança as almas em Deus e uni-as a Ele.

21- Que ninguém pense, com alguns falsos iluminados, que Maria, como criatura, seja um empecilho à união com o Criador; não é mais Maria que vive, é somente Jesus Cristo, é somente Deus que vive nela. Sua transformação em Deus ultrapassa mais ainda a de São Paulo e dos outros Santos, mais do que o Céu ultrapassa a terra em elevação. Maria não é feita senão para Deus, e basta que Ela prenda uma alma a si própria, que, ao contrário logo a lança em Deus e a une a Ele com tanto maior perfeição quanto mais a alma se una a Ela: Maria é o eco de Deus, que não responde senão Deus, quando se lhe grita: Maria; que não glorifica senão a Deus, quando com Santa Isabel, a chamamos bem-aventurada.

CONCLUSÃO DESTA PRIMEIRA PARTE
Para tornar-se santo, é preciso, pois,
encontrar Maria, a Medianeira das graças,
e isto por uma “verdadeira devoção à Santa Virgem”.

23- A dificuldade está, portanto, em saber encontrar verdadeiramente a divina Maria para encontrar toda graça abundante: Deus, sendo senhor absoluto, pode comunicar por si mesmo o que ordinariamente não comunica senão por Maria, não se pode negar, sem temeridade, que não o faça algumas vezes: (1) no entanto, segundo a ordem que a divina sabedoria estabeleceu, ele não se comunica aos homens na ordem da graça senão por Maria, como diz São Tomás. É necessário, para subir e unir-se a ele usar o mesmo meio de
que ele se serviu para descer a nós, para se fazer homem e nos comunicar suas graças: e esse meio é uma verdadeira devoção à Santíssima Virgem.

SEGUNDA PARTE

“A VERDADEIRA DEVOÇÃO” A SANTÍSSIMA VIRGEM
                           ou
A SANTA ESCRAVIDÃO DE AMOR

A - ESCOLHA DA VERDADEIRA OU PERFEITA DEVOÇÃO

Há diversas verdadeiras devoções a Maria.

24- Há, com efeito, diversas devoções verdadeiras à Ssma. Virgem: e não falo aqui das falsas.
 A devoção sem prática especial

25- A primeira consiste em cumprir os deveres de cristão, evitando o pecado mortal, agindo mais por amor que por temor, invocando de quando em vez a Santa Virgem e honrando-a como Mãe de Deus, sem, no entanto, nenhuma devoção especial para com Ela.

2. A devoção incluindo práticas particulares.

26- A segunda consiste, em ter para com a Santa Virgem sentimentos mais perfeitos de estima, de amor, de confiança e de veneração. Leva a entrar em confrarias do santo Rosário, do Escapulário, a recitar o Terço e o santo Rosário, a honrar suas imagens e seus altares , em publicar seus louvores e
alistar-se em suas congregações. E essa devoção, excluindo o pecado, é boa, santa e louvável; mas não é tão perfeita e tão capaz de desapegar as almas das criaturas e de as desprender de si própria para uni-las a Jesus Cristo.

3. A devoção perfeita: a da Santa Escravidão de amor.

27- A terceira devoção à santa Virgem, conhecida e praticada por muito poucas pessoas, é esta que te vou revelar, alma predestinada.

B - NATUREZA E EXTENSÃO DA VERDADEIRA DEVOÇÃO A MARIA,
CHAMADA SANTA ESCRAVIDÃO DE AMOR.

Natureza desta devoção: Consagração a título
de escravo de amor, e vida de união com Maria.

28- Consiste esta em dar-se inteiramente, na qualidade de escravo, a Maria e a Jesus por Ela; depois, em fazer todas as coisas com Maria, em Maria por Maria e para Maria.
Explico estas palavras.
Extensão desse sacrifício: é um
abandono total nas mãos de Maria.

29- É preciso escolher um dia assinalado para se dar, consagrar e sacrificar voluntariamente e por amor, sem constrangimento, inteiramente, sem nenhuma reserva, corpo e alma; os bens exteriores de fortuna, como a casa, a família, as rendas; e os bens interiores da alma: méritos, graças, virtudes e satisfações.
É preciso notar que se sacrifica, por esta devoção, a Jesus por Maria tudo o que uma alma tem de mais caro e o de que nenhuma ordem religiosa exige o sacrifício, que é o direito que se tem de dispor de si mesmo e do valor de suas orações, esmolas, mortificações e satisfações; de sorte que tudo se deixa à
inteira disposição da Ssma. Virgem, para que o aplique segundo sua vontade para a maior gloria de Deus, que só Ela conhece perfeitamente.

Maria torna-se Senhora do valor de nossas obras.

30- Deixa-se à sua inteira disposição todo o valor satisfatório e impetratório de todas as obras: assim, após a oblação que delas se fez, embora sem nenhum voto, não se é mais senhor do bem que se faz; mas a Ssma. Virgem pode aplicá-lo a uma alma do Purgatório, para aliviá-la ou livrá-la, ou a um pobre pecador para convertê-lo.

31- Põem-se, por esta devoção, os méritos próprios nas mãos da Santa Virgem; mas é para guardá-los, aumentá-los, embelezá-los, pois nós não nos podemos comunicar uns aos outros nem os méritos da graça santificante nem da glória. Damos-lhe, porém, todas as nossas orações e boas obras próprias, tanto satisfatórias como impetratórias, para que Ela as distribua e as aplique a quem e como lhe aprouver; e se depois de nos termos assim consagrado à santa Virgem desejarmos aliviar alguma alma do Purgatório, salvar algum pecador, sustentar algum de nossos amigos com nossas orações, nossas esmolas, nossas mortificações, nossos sacrifícios, será necessário pedir-lhe humildemente e conforma-se com o que Ela determinar, sem o sabermos; ficando bem persuadidos de que o valor das nossas ações, distribuído pela mesma mão de que Deus se serve para nos distribuir suas graças e seus dons, não pode deixar de ser aplicado para a sua maior glória.

Três espécies de escravidão a escravidão
de amor é a mais perfeita consagração a Deus

32- Disse que esta devoção consiste em dar-se a Maria na qualidade de escravo. É preciso notar que há três espécies de escravidão.
A primeira é a escravidão por natureza; os homens bons e os maus são escravos de Deus dessa maneira.
A segunda é a escravidão por sujeição; os demônios e os réprobos são escravos de Deus dessa maneira.
A terceira é a escravidão de amor, voluntária; é aquela pela qual nos devemos consagrar a Deus por Maria, a maneira MAIS PERFEITA pela qual uma criatura se pode dar ao seu Criador.

Diferença entre um simples servidor e um escravo.

33- Notai ainda que há bastante diferença entre um servidor e um escravo: — Um servidor quer salário pelos seus serviços; o escravo o tem absolutamente. O empregado tem liberdade para deixar quando quiser o seu patrão e só o serve por um certo tempo; o escravo não tem direito de deixar o seu senhor; é dele para sempre. O servidor não dá o seu amo direito de vida e morte sobre sua pessoa; o escravo dá-se inteiramente, de sorte que seu amo poderia até matá-lo sem que fosse inquietado pela justiça.
È fácil ver, porém, que o escravo por sujeição está na mais estreita das dependências, a qual propriamente não convém senão em se tratando de um homem em relação ao seu Criador. É por isso que os Cristãos não tem tais escravos; só os tem assim os Turcos e os idólatras.

Felicidade das almas escravas de amor.

34- Feliz e mil vezes feliz é a alma generosa que se consagra a Jesus por Maria, na qualidade de escrava de amor, depois de sacudida pelo batismo a escravidão do demônio!

C - A EXCELÊNCIA DA SANTA ESCRAVIDÃO:
PROVÉM DE FAZERMOS PASSAR TODA A NOSSA VIDA ESPIRITUAL
POR MARIA, A MEDIANEIRA

Passar por Maria É imitar as três Pessoas divinas.

35- Muitas luzes me seriam necessárias para descrever perfeitamente a excelência desta prática. Direi somente, de passagem:

1º) Que dar-se assim a Jesus, pelas mãos de Maria, é imitar Deus Pai, o qual não nos deu seu Filho senão POR Maria, e que não nos comunica suas graças senão POR Maria; é imitar Deus Filho que não veio a nós senão POR Maria e que nos havendo dado exemplo para que fizéssemos como Ele fez, pediu-nos fossemos a Ele pelo mesmo meio PELO qual Ele veio a nós, que é Maria, é imitar o Espírito Santo, o qual não nos comunica suas graças e seus dons senão por Maria. Não é justo que a graça volte a seu autor, diz São Bernardo, pelo mesmo canal por que veio a nós?

É honrar a Jesus

36- 2º) Ir a Jesus POR Maria, é verdadeiramente honrar a Jesus Cristo, pois é frisar que não somos dignos de nos aproximar de sua santidade infinita diretamente, por nós mesmos, devido aos nossos pecados, e que temos necessidade de Maria, sua santa Mãe, para ser nossa advogada e nossa MEDIANEIRA junto dele, que é o nosso MEDIADOR. É, ao mesmo tempo, nos aproximarmos dele como de nosso mediador e nosso irmão, e nos humilharmos diante dele como diante de nosso Deus e nosso juiz: em uma palavra, é praticar a humildade, na qual sempre se deleita o coração de Deus.

É o meio de purificar e embelezar nossas boas ações.

37- 3º) Consagrar-se desse modo a Jesus POR Maria, é colocar nas mãos de Maria as nossas boas ações, as quais, embora pareçam boas, são freqüentemente manchadas e indignas do olhar e da aceitação de Deus, diante do qual nem as estrelas são puras Ah! Supliquemos a essa boa Mãe e Senhora, que, havendo recebido nosso pobre presente, o purifique, santifique, eleve e embeleze de tal maneira, que o torne digno de Deus. Todos os rendimentos de nossa alma são menores diante de Deus, o Pai de família,
para ganhar sua amizade e sua graça, do que seria diante do rei a maçã bichada dum pobre camponês, para pagar seu campo. Que faria esse pobre homem se fosse esperto e tivesse prestígio junto da rainha? Amiga do pobre campônio e respeitosa para com o rei, não tiraria dessa maçã o que estivesse bichado e estragado, e não a colocaria uma bandeja de ouro, rodeada de flores? e o rei poderia deixar de a receber até com alegria, das mãos da Rainha, que ama o camponês? Modicum quid offere desideras? manibus Mariae tradere cura, si non vis sustinere repulsam. Se quereis oferecer alguma coisa a Deus, diz São Bernardo, colocai-[a] nas mãos de Maria, a menos que queirais ser repelido.

Pois sem Maria nossas ações valem muito pouco.

38- Bom Deus! Como é pouco tudo o que fazemos! Coloquemo-lo, porém, nas mãos de Maria, por meio desta devoção. Como nos teremos dado inteiramente a Ela, tanto quanto se pode, despojando-nos de tudo em sua honra, Ela nos será infinitamente mais liberal, Ela nos dará “por um ovo um boi”; Ela se comunicará toda a nós com seus méritos e suas virtudes; Ela colocará nossos presentes no prato de ouro de sua caridade; Ela nos revestirá, como Rebeca fez com Jacó, das belas vestimentas de seu Filho primogênito e único Jesus Cristo, quer dizer, com os méritos que ela tem à sua disposição: e assim, como criador e escravos seus, depois de nos termos despojado de tudo para honrá-la, teremos duplas vestes: Omnes domestici ejus vestiti sunt duplicibus: vestuários, ornamentos, perfumes, méritos e virtudes de Jesus e de Maria na alma de um escravo de Jesus e de Maria despojado de si mesmo e fiel no seu despojamento.

É exercer maravilhosamente a
caridade para com o próximo.

39- 4º) Dar-se, assim, à Ssma. Virgem, é exercer ao mais alto grau que se pode a caridade para com o próximo, pois fazer-se voluntariamente seu cativo é dar-lhe o que se tem de mais caro, a fim de que ela possa dispor de tudo à sua vontade em favor dos vivos e dos mortos.

É a maneira de conservar e de aumentar a graça de Deus em nossas almas.

40- 5º) É por esta devoção que se colocam as graças, os méritos e virtudes em segurança, fazendo Maria a depositária e dizendo-lhe: “Tomai, minha querida senhora, eis o que, pela graça de vosso caro filho, eu fiz de bem: não sou capaz de guardá-lo devido à minha fraqueza e inconstância, por causa do grande número e da malícia de meus inimigos que me atacam dia e noite. Ai de mim! Se se vêem todos os dias os cedros do Líbano caírem na lama, e águias, que se elevam até o sol, se tornarem aves noturnas; também mil justos caem à minha esquerda e dez mil à minha direita; porém minha poderosa, e muito poderosa Princesa, sustentai-me que temo cair; guardai todos os meus bens, que tenho medo de que me roubem; eu confio a Vós em deposito tudo o que possuo: Depositum custodi. — Scio cui credidi: Sei bem quem sois, eis porque me confio todo a vós; sois fiel a Deus e aos homens, e não permitireis que pereça nada do que vos foi confiado; sois poderosa, e nada pode prejudicar, nem arrebatar o que tendes nas mãos”. Ipsam sequens non devias; ipsam rogans non desperas; ipsam cogitans non erras; ipsa tenente, non corruis; ipsa protegente, non metuis; ipsa duce, non fatigaris; ipsa propitia, pervenis. (São Bernardo, Inter flores, cap. 135, De Maria Virgine, pa. 2150). E noutro: Detinet Filium ne percutiat; detinet diabolum ne noceat; detinet virtutes ne fugiant; detinet merita ne pereant; detinet gratias ne effluant. São as palavras de São Bernardo, as quais exprimem em substância tudo o que acabo de dizer. Quando não houvesse senão esse motivo para excitar-me a esta devoção, como sendo o meio seguro de me conservar e progredir mesmo, na graça de Deus, eu deveria arder de entusiasmo por ela.

É a verdadeira libertação da nossa alma.

41- 6º) Esta devoção torna a alma verdadeiramente livre, daquela liberdade dos filhos de Deus. Como, por amor de Maria, voluntariamente nos reduzimos à escravidão, esta querida Senhora, em reconhecimento, alarga e dilata-nos o coração, e faz-nos caminhar a passo de gigante no caminho dos mandamentos de Deus. Ela remove o tédio, a tristeza e o escrúpulo. Foi esta devoção que Nosso Senhor ensinou à Madre Inês de Langeac, falecida em odor de santidade, como meio seguro para sair das grandes penas e perplexidades em que se achava. “Faz-te, disse-lhe Ele, escrava de minha Mãe e acorrenta-te”, o que ela fez; e, no mesmo instante, todas as suas penas cessaram!

É seguir o conselho da Igreja e o exemplo dos santos.

42- Para dar autoridade a esta devoção, seria necessário citar aqui todas as bulas e as indulgências dos Papas e os mandamentos dos Bispos a seu favor, as confrarias estabelecidas em sua honra, o exemplo de diversos santos e grandes personagens que a praticam; todavia passo tudo em silêncio.

D - PRÁTICAS INTERIORES DA SANTA ESCRAVIDÃO
SEU ESPÍRITO E SEUS FRUTOS

1. Sua formula “única” de atividade espiritual e seu espírito.
Sua fórmula.

43- Disse eu, a seguir, que esta devoção consiste em praticar todas as ações com Maria, em Maria, por Maria e para Maria Seu espírito de dependência interior de Jesus e Maria. Adquirir esse espírito e perseverar nele.

44- Não basta nos havermos dado uma vez a Maria, na qualidade de escravo; não basta mesmo fazê-lo todos os meses, todas as semanas: seria uma devoção demasiado passageira e não elevaria a alma à perfeição a que é capaz de se elevar. Não há muita dificuldade em inscrever-se numa confraria, adotar esta devoção e dizer algumas orações vocais todos os dias, como se prescreve; grande dificuldade é entrar no espírito desta devoção, que é de tornar uma alma inteiramente dependente escrava da Ssma. Virgem e de Jesus por Ela. Encontrei muitas pessoas que com ardor admirável se puseram
sob sua santa escravidão, porém exteriormente; raros encontrei que tivessem o espírito e ainda menos, que houvessem perseverado.

2. As quatro diretivas de sua família.

Agir “COM” Maria.

45- A pratica essencial desta devoção em fazer todas suas ações com Maria, quer dizer tomar a Santa Virgem como modelo perfeito de tudo o que se deva fazer.

Condições prévias: enuncia e união de intenção
que entregam a alma à ação de Maria.

46- Por isso que antes de empreender qualquer coisa é necessário renunciar a si próprio e à sua maneira de ver, é necessário aniquilar-se diante de Deus, como incapaz por si de qualquer bem sobrenatural e de qualquer ação útil para a salvação; é necessário recorrer à Ssma. Virgem, e unir-se a Ela e às suas intenções, embora desconhecidas; é necessário unir-se por Maria às intenções de Jesus Cristo, ou seja, colocar-se como um instrumento nas mãos da Ssma. Virgem, a fim de que seja ela quem aja em nós, de nós, e para nós, como bem lhe parecer, para maior glória de seu filho, e, por seu Filho Jesus, para maior glória do Pai: de modo que não se pratique vida interior e operação espiritual senão na dependência dela.

Agir em Maria

47- 2º) É necessário fazer todas as coisas em Maria, isto é, acostumar-se pouco a pouco a recolher-se no interior de si mesmo, para formar uma pequena idéia ou imagem espiritual da SSma.Virgem. Ela será para a alma o Oratório, onde se farão todas as suas orações a Deus, sem temor de ser repelida; a Torre de Davi, para ai se por, em segurança, contra todos os seus inimigos; a Lâmpada acesa para alumiar todo o interior e arder de amor divino; o Ostensório sagrado para ver a Deus com Ela; e, enfim, seu ÚNICO TUDO junto de Deus e seu refúgio universal. Se a alma reza, será em Maria; se recebe a Jesus, pela Santa Comunhão, ela o colocará em Maria para ai se comprazer; se age, será em Maria; e por toda parte e em tudo fará atos de renuncia de si mesma.

Agir por Maria.

48- 3º) É preciso não ir nunca a Nosso Senhor senão (por Maria), por sua intercessão e seu crédito junto dele, jamais o encontrando sozinho para dirigir-lhe nossas súplicas.

Agir PARA Maria.

49- É necessário praticar todas as suas ações para Maria, quer dizer que, sendo escravo desta augusta Princesa, e preciso que se não trabalhe mais senão para Ela, para seu proveito e sua glória, como fim próximo, e para a glória de Deus, como fim último. Deve[-se], em tudo o que se faz, renunciar ao amor próprio que, quase sempre, imperceptivelmente se toma por fim, e repetir freqüentemente do fundo do coração: Ó minha querida Senhora, é para vós que vou aqui ou ali, que faço isto ou aquilo, que sofro esta dor ou esta injúria!

3. Três advertências importantes relativas ao espírito da Santa Escravidão.

Não crer que é mais perfeito ir a Jesus
diretamente sem passar por Maria

50- Toma cuidado, alma predestinada, de crer que seja mais perfeito ir diretamente a Jesus, diretamente a Deus em tua operação e intenção; se aí queres ir sem Maria, tua operação, tua intenção será de pouco valor; porém, indo por Maria, é a operação de Maria em ti, e em conseqüência será muito valorizada e digna de Deus.

Não se fazer violência para “sentir e provar”
O “Amem” da alma.

51- E mais, evita fazeres violência para sentir e saborear o que dizes e fazes: diz e faz tudo naquela pura fé que Maria teve na terra, e que Ela te comunicará com o andar do tempo; deixa à tua Soberana, pobre e pequena escrava a vista clara de Deus, os transportes, as alegrias, os prazeres, as riquezas e não tome para ti senão a fé pura, cheia de tédios, de distrações, de aborrecimentos, de aridez; diz: “Amem, assim seja, ao que Maria, minha Senhora, faz no Céu. É o que de melhor faço eu por enquanto.”
Não se inquietar se não se goza

Ainda da presença de Maria.

52- Toma bastante cuidado também de não te atormentar por não fruíres da doce presença da Santa Virgem em teu interior. Esta graça não é concedida a todos, e quando Deus, por grande misericórdia, favorece com ela a alguma alma, é-lhe fácil perdê-la, se não for fiel em recolher-se freqüentemente; e se esta desgraça te acontecer, volta docemente e pede perdão à tua Soberana.

4. Frutos maravilhosos desta prática interior da Santa Escravidão.

É ainda, sobretudo, a experiência que os ensinará.

53- A experiência ensinar-te-á infinitamente mais do que te digo, e acharás, se fores fiel ao pouco que te disse, tanta riqueza e tantas graças neste exercício, que ficarás surpreendido e tua alma toda cheia de alegria.
É necessário, pois, trabalhar por uma prática fiel, a fim de ter em si a alma e o espírito de Maria.


54- Trabalharemos, pois, alma querida, e façamos de tal maneira que, por esta devoção fielmente praticada, a alma de Maria esteja em nós para se rejubilar em Deus seu Salvador. Aí estão as palavras de Santo Ambrósio: “Sit in singulis anima Mariae ut Magnificet Dominum, sit in singulis spiritus Mariae
ut exultet in Deo” E não acreditemos que houve mais glória em habitar no seio de Abraão, que é chamado o Paraíso, do que no seio de Maria, pois em Deus ai pôs o seu trono. São palavras do sábio abade Guerric: “Ne credideris majoris esse felicitais habitare in sinu Abrahae, qui vocatur Paradisus, quam in sinu Mariae in quo Dominus possuit thronum suum”.

A Santa Escravidão estabelece sobretudo
a vida de Maria em nossa Alma.

55- Esta devoção, fielmente praticada, produz uma infinidade de efeitos na alma. Porém o principal — (verdadeiro) dom que as almas possuem, é o de estabelecer aqui na terra a vida de Maria em uma alma, de maneira que não é mais a alma que vive, porém Maria nela: ou a alma de Maria torna-se a sua alma, por assim dizer. Ora, quando por uma graça inefável, porém verdadeira, a divina Maria é Rainha de uma alma, que maravilha não fará Ela aí? Como obreira das grandes maravilhas, particularmente no interior, Ela aí trabalha em segredo, sem conhecimento da própria alma que, se disso tivesse ciência, destruiria a beleza de suas obras.

Maria faz viver incessantemente nossa alma
em Jesus, e Jesus em nossa alma.

56 Como em toda parte é Ela a Virgem fecunda, Ela leva a todo interior, onde está a pureza de coração e de corpo, a pureza em suas intenções e seus desígnios, a fecundidade em boas obras. Não creias, querida alma, que Maria, a mais fecunda de todas as criaturas, e que foi até ao ponde de produzir um Deus, permaneça ociosa em uma alma fiel. Ela a fará viver sem cessar para Jesus Cristo, e Jesus Cristo nela. Filioli mei, quos iterum parturio done formetur Christus in vobis (Gl 4, 19); e se Jesus Cristo é igualmente o fruto de Maria em cada alma em particular como para todos em geral, é particularmente na alma em que Ela está que Jesus Cristo é seu fruto e sua obra prima.

Maria torna-se tudo para nossa alma junto de Jesus.

57- Enfim, Maria torna-se tudo para essa alma junto de Jesus Cristo: Ela ilumina seu espírito pela fé pura, Ela aprofunda seu coração pela humildade, Ela o dilata e abrasa pela caridade, Ela o purifica por sua pureza, e o enobrece e o engrandece por sua maternidade. Porém em que me detenho? Só a experiência ensina essas maravilhas de Maria, que são incríveis para as pessoas sábias e orgulhosas, e mesmo para o comum dos devotos e devotas.

5. Papel da Santa Escravidão no fim dos tempos.

É por Maria que o Reino de Jesus
chegará ao fim dos tempos.

58- Como foi POR Maria que Deus veio ao mundo pela primeira vez, na humilhação e no aniquilamento, não se poderia também dizer que é POR Maria que Deus virá uma segunda vez, como toda a Igreja espera, para reinar em toda parte e para julgar os vivos e os mortos ? Saber como isso se fará, e quando se fará, quem o sabe? Mas sei bem que Deus, cujos pensamentos estão mais afastados dos nossos do que o céu está da terra, virá em um tempo e da maneira mais inesperada pelos homens, mesmo dos mais sábios e dos mais entendidos na Sagrada Escritura, que é, aliás, bastante obscura a este respeito.

É pela Santa Escravidão, praticada pelos seus
grandes santos, que Maria trará o Reino definitivo de Jesus.

59- Deve-se ainda crer que para o fim dos tempos, e talvez mais cedo do que se pensa, Deus suscitará grandes cheios do Espírito Santo, e do espírito de Maria, pelos quais esta divina Soberana fará grandes maravilhas no mundo, para destruir o pecado e estabelecer o reino de Jesus Cristo, seu
Filho, sobre o mundo corrompido; e é por meio desta devoção à Ssma. Virgem, que não faço senão esboçar e diminuir por minha fraqueza, que essas santas personagens conseguirão tudo.

E - PRÁTICAS EXTERIORES DA SANTA ESCRAVIDÃO

Sua importância

60- Além da prática interior desta devoção, de que acabamos de falar, existem as exteriores que não se devem omitir nem descuidar.

A consagração e sua renovação

61- A primeira é a de se dar a Jesus Cristo em qualquer dia memorável pelas mãos de Maria, da qual no tornamos escravos, e de nessa intenção comungar, nesse dia, passando-o em oração: consagração que se renovará pelo menos todos os anos, no mesmo dia.

Oferecimento de um tributo à Santa Virgem

62- A segunda prática é a de oferecer todos os anos, no mesmo dia, um pequeno tributo à Santa Virgem, em sinal de sujeição e dependência; sempre foi essa a homenagem dos escravos aos seus senhores. Ora, esse tributo é, ou alguma mortificação, alguma esmola, alguma peregrinação, ou algumas orações. O bem-aventurado Marin, segundo o testemunho de seu irmão, São Pedro Damião, se disciplinava publicamente todos os anos, no mesmo dia, diante de um altar da Santa Virgem. Não se pede nem se aconselha tal fervor; mas se não se dá muito a Maria, deve-se ao menos oferecer o que se apresenta com coração humilde e reconhecido.

A celebração especial da festa da Anunciação


63- A terceira é de celebrar todos os anos, com uma devoção particular, a festa da Anunciação, que é a festa principal desta devoção, a qual foi estabelecida para honrar e imitar a dependência em que o Verbo eterno se colocou nesse dia, por nosso amor.

A recitação da “Pequena Coroa” e do “Magnificat”

64- A quarta prática exterior é de rezar todos os dias, sem obrigação de pecado se se deixar, a Pequena Coroa da Santa Virgem, composta de três Padre-Nossos e de doze Ave-Marias; e recitar freqüentemente o Magnificat, que é o único cântico que temos de Maria, para agradecer a Deus os seus favores e atrais novos; sobretudo não se deve deixar de rezar depois da Santa Comunhão, como o sábio Gerson: crê que a mesma

Santa Virgem fazia após a comunhão.
O uso da correntinha

65- A quinta consiste em usar uma pequena corrente benta no pescoço, ou no braço, ou no pé ou atravessada no corpo. Esta prática pode omitir completamente, sem interessar fundamentalmente a esta devoção; seria, contudo, pernicioso desprezá-la e condená-la, e perigoso negligenciá-la.

Eis as razões para usar este sinal exterior:

1º) para garantir-se das funestas cadeias do pecado original e atual, pelas quais fomos amargurados; 2º) para honrar as cordas e laços amorosos com os quais Nosso Senhor quis ser amarrado, para nos tornar verdadeiramente livres; 3º) como esses são laços de caridade, traham eos in vinculis caritais, lembram-nos que não devemos agir senão movidos dessa virtude; 4º) enfim, recordam nossa dependência de Jesus e de Maria, na qualidade de escravos; daí o costume de usar tais correntes.
Vários personagens eminentes, que se fizeram escravos de Jesus e de Maria, estimavam tanto essas correntes que se queixavam de lhes não ser permitido arrastá-las nos pés publicamente, como os escravos dos Turcos.
Ó cadeias, mais preciosos e mais gloriosas do que os colares de ouro e de pedras preciosas de todos os imperadores, pois nos ligam a Jesus Cristo e à sua Santa Mãe, e representam para nós suas gloriosas marcas e librés! É preciso notar que é conveniente que as correntes, se não forem de prata, sejam ao menos de ferro, por causa da comodidade não se deve deixá-las nunca durante a vida, a fim de que elas nos possam acompanhar até o dia do julgamento. Que alegria, que glória, que triunfo para um fiel escravo, no dia do julgamento, que seus ossos, ao som da trombeta, se levantem da terra ligados ainda pela corrente da escravidão que, aparentemente, não estará apodrecida! Fortemente animado de tal pensamento, não deve deixá-la um devoto escravo, em tempo algum, por mais incômoda que seja para a natureza.

ORAÇÃO A JESUS

66- Meu amável Jesus, permiti que me dirija a vós para testemunhar o meu reconhecimento pela graça que me concedestes, dando-me a vossa santa Mãe pela devoção da escravidão, para ser minha advogada junto de vossa Majestade, e meu suplemento universal em minha grandíssima miséria. Ai de mim! Senhor, sou tão miserável, que sem esta boa Mãe estaria irremediavelmente perdido. Sim. Maria me é necessário junto de vós, em toda parte: necessária para vos aplacar em vossa justa cólera, pois vos tenho ofendido todos os dias; necessária, para sustar os castigos eternos de vossa justiça, que mereço; necessária para contemplar-vos, falar-vos, rogar-vos, aproximar-me de vós e vos agradar; necessária para salvar minha alma e a dos outros; necessária, em uma palavra, para fazer sempre a vossa vontade e procurar em tudo a vossa maior glória.
Ah! quem me dera publicar por todo o universo esta misericórdia que tivestes para comigo! E que todo o mundo soubesse que sem Maria já estaria condenado! Pudesse eu render-vos dignas ações de graças por tão grande benefício! Maria está em mim, haec facta est mihi, Oh! Que tesouro! Que consolo! E eu não seria, depois disso, todo dela? Que ingratidão, meu Salvador amado! Enviai-me a morte antes que me aconteça tal desgraça: pois prefiro morrer que viver sem ser todo de Maria.
Mil e mil vezes tomei-a, com S.João Evangelista ao pé da cruz, por todo o meu bem! e outras tantas vezes dei-me a Ela; mas se até agora não o fiz bem, conforme desejos, ó Jesus amado, faço-o agora como quereis que o faça, e se vedes em minha alma e em meu corpo algo que não pertença a essa augusta Princesa eu vos rogo que o arranqueis e o jogueis para longe de mim, pois que o que não é de Maria não é digno de vós.

INVOCAÇÃO FINAL AO ESPÍRITO SANTO

67- Ó Espírito Santo! concedei-me todas essas graças e plantai, regai e cultivai em minha alma a amável Maria, que a Arvore da vida verdadeira, a fim de que cresça, floresça e suscite frutos de vida com abundância. Ó Espírito Santo! dai-me uma grande devoção e uma grande inclinação para com vossa divina Esposa, um grande apoio sobre seu seio maternal e recurso contínuo à sua misericórdia, a fim de que nela formeis em mim a Jesus Cristo, grande e poderoso, até à plenitude de sua idade perfeita. Assim seja.

ORAÇÃO A MARIA SANTÍSSIMA

Eu vos saúdo, ó Maria, Filha bem amada do Pai Eterno; eu vos saúdo, ó Maria, Mãe admirável do Filho; eu vos saúdo, o Maria, Esposa fidelíssima do Espírito Santo; eu vos saúdo, ó Maria, minha Mãe querida, minha amável Senhora e minha poderosa Soberana; eu vos saúdo, minha alegria, minha glória, meu coração e minha alma! Vos sois inteiramente minha por misericórdia e eu sou todo vosso por justiça; e ainda não o sou suficientemente; eu me dou inteiramente a vós; novamente, na qualidade de escravo eterno, sem nada reservar para mim nem para outrem se vedes ainda em mim alguma coisa que vos não pertença, eu vos suplico que o tomeis neste momento, e vos torneis a Senhora absoluta de minhas forças; destruí, desenraizai e aniquilai tudo o que desagrade a Deus; e implantai, incrementai e operai tudo o que vos agrade.
Que a luz de vossa fé dissipe as trevas de meu espírito; que vossa humildade profunda tome o lugar do meu orgulho; que vossa contemplação sublime detenha as distrações de minha imaginação errante; que vossa vista continua de Deus encha de sua presença minha memória; que o incêndio da caridade de vosso Coração dilate e abrase a tibieza e a frieza do meu, que vossas virtudes tomem o lugar de meus pecados; que vossos méritos sejam meu ornamento e meu suplemento diante de Deus. Enfim, ó minha Mãe bem amada, fazei, se for possível, que eu não tenha outro espírito senão o vosso para conhecer a Jesus Cristo e sua divina vontade; que eu não tenha outra alma senão a vossa para louvar e glorificar o Senhor; que eu não tenha outro coração senão o vosso para amar a Deus com um amor puro e ardente como o vosso.
Não vos peço visão, nem revelações, nem gostos, nem prazeres mesmo espirituais. Vós é que vedes claramente sem trevas; provais claramente, sem amargor; triunfais gloriosamente à direita de vosso Filho no céu, sem nenhuma humilhação; ordenais de uma maneira absoluta aos Anjos, aos homens e aos demônios, sem que se vos possa resistir, dispondo, enfim, segundo a vossa vontade, de todos os bens de Deus, sem reserva alguma, eis o divinal Maria, a melhor parte que o Senhor vos deu e que nunca vos será tirada; com o que sobremaneira me alegro. De minha parte, cá em baixo, não quero absolutamente outra alegria que a que tivestes; a de crer simplesmente, sem nada sentir nem ver; a de sofrer alegria, sem consolo das criaturas; a de morrer continuamente a mim mesmo, sem alívio algum, trabalhar denotadamente até a minha morte, para vós, sem nenhum interesse, como ao mais vil de vossos escravos. O único favor que vos peço, por pura misericórdia , é que todos os dias e momentos da minha vida, eu diga três vezes Amem: Assim seja, a tudo o que fizestes na terra, quando aqui viveis; Assim seja, a tudo o que fazeis presentemente no céu; Assim
seja, a tudo o que fazeis em minha alma, a fim de que não haja senão vós a glorificar plenamente a Jesus em mim no tempo e na eternidade. Assim seja.

São Luís Maria Grignion de Montfort foi um padre e um pregador por apenas 16 anos, muitas vezes tendo arriscado tudo pelo caminho. Alguns anos antes de sua morte, ele escreveu à (Marie Louise Trichet), a primeira Filha de Sabedoria: "Se fizermos qualquer coisa para não correr riscos por Deus nunca iremos fazer 
algo de grande por ele."




São Luís Maria Grignion de Montfort, na sua obra "Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem Maria", profetizou o surgimento futuro daqueles a que o próprio santo chamou de "Apóstolos dos Últimos Tempos" e que viriam a ser confirmados, mais tarde, durante as aparições de Nossa Senhora de La Salette:

Eu dirijo um urgente apelo à Terra; chamo os verdadeiros discípulos do Deus Vivo que reina nos Céus; chamo os verdadeiros imitadores de Cristo feito Homem, o único e verdadeiro salvador dos homens; chamo os meus filhos, os meus verdadeiros devotos, aqueles que já se me consagraram a fim de que vos conduza ao meu Divino Filho; os que, por assim dizer, levo nos meus braços, os que têm vivido do meu Espírito; finalmente, chamo os Apóstolos dos Últimos Tempos, os fiéis discípulos de Jesus Cristo que têm vivido no desprezo do mundo e de si próprios, na pobreza e na humildade, no desprezo e no silêncio, na oração e na mortificação, na castidade e na união com Deus, no sofrimento e no desconhecimento do mundo. Já é hora de que saiam e venham iluminar a Terra. Ide e mostrai-vos como filhos queridos meus. Eu estou convosco e em vós sempre que a vossa fé seja a luz que alumie, e nesses dias de infortúnio, que o vosso zelo vos faça famintos da glória de Deus e da honra de Jesus Cristo.


Nota:  quem tem ouvido que ouça quem  tem olhos que veja pois a mais ou menos
a 298 anos o santo nos mostrava nossa realidade de hoje,queria eu na minha
miséria ser uns desse apóstolos dos fim dos tempos junto com a mãe de Deus
pois estamos nesses dias:
  




 A contrição perfeita uma chave de ouro do Céu


aos fiéis oferecida

por
J. de Driesch

Sacerdote da Arquidiocese de Colônia

com um prólogo
pelo
P. Agostinho Lehmkuhl, S.J.

Tradução para o português
Bahia
Tip. de S. Francisco (1913)


NIHIL OBSTAT.
Fr. Benigno Randebrock, O.F.M.
Cens.
Dioc.
IMPRIMATUR.
Bahia, 11 de Março de 1913.
Mons. Castro,


Vigário Geral


Prólogo

Tanto pela importância da matéria, de certo bem pouco conhecida da maioria dos cristãos, como pela abundância de doutrina e o interesse com que ela é tratada no que diz respeito à sua utilidade prática, bem pode dizer-se que este livrinho encerra em suas poucas páginas o valor de muitos volumes.
O grande meio de salvação chamou Santo Afonso Maria de Ligório a um livrinho que, entre muitos outros, compôs sobre a oração; e diz dele que queria vê-lo nas mãos de todos, por tratar de um meio tão principal e de tanta eficácia para assegurar o Céu às almas. Pois, com não menos verdade, ainda que em sentido algum tanto distinto, devemos dizer outro tanto da prática do amor e contrição perfeita, como sendo o grande meio de salvação, pois que está em conexão ainda mais imediata com a consecução da vida eterna do que somente a oração.
Por isso, queria eu, como Santo Afonso com o seu, ver este livrinho nas mãos de todos, persuadido de que a sua atenta leitura e a execução prática das doutrinas que nele se ensinam, abrirão as portas do céu a muitíssimas almas, para quem, sem ele, estariam eternamente cerradas, e de que hão de acrescentar de uma maneira inesperada o direito ao Céu e à eterna bem-aventurança a muitas outras que, pela guarda da graça santificante, já são credores dele.
Não devia haver cristão algum que não estivesse solidamente instruído sobre a transcendência que tem um ato de contrição e caridade perfeita, pois que é de incalculável importância tanto para a hora da morte própria como para a dos outros, a quem talvez tenha de assistir.
Assim, pois, ninguém deveria esquecer-se desta verdade em tempo de saúde; porém, para o tempo de enfermidade e de perigo sobretudo, é sumamente para desejar-se que a conheçam a fundo e profundamente a gravem na alma os que a têm esquecido ou só imperfeitamente a conhecem.
Oxalá, pois, se difunda o mais possível esta obrazinha, e não duvido de que a sua leitura será acompanhada de inumeráveis bênçãos do céu.

Pe. Agostinho Lehmkuhl, S.J.

Valkenburg, Colégio de Santo Inácio, outubro de 1903.


Introdução

Ao ver o título de Chave de ouro do Céu, parece-me, amado leitor, que estarás ansioso por ver se este livrinho corresponde por dentro ao que promete por fora. Mas, pode ser que te ocorram algumas suspeitas. Talvez que, nas práticas dominicais, o teu zeloso pároco te tenha prevenido contra certas folhas e publicações supersticiosas, contra as Chaves do Céu, os Ferrolhos do Inferno, as Orações maravilhosas autênticas e contra todas as mercadorias parecidas, chamem-lhe como quiserem.
"Porém, se este livrinho é o que deve e promete ser — dirás, de ti para ti — seria ditoso, teria uma chave do Céu, de que poderia muito bem aproveitar-me".
E verdadeiramente de ouro e digna, portanto, de todo o apreço deve ser a chave que este autor me apresenta reluzente diante dos olhos.
Se é de verdadeiro ouro, e não só de ouropel, estou feliz.
Sim, amado leitor, sólida e legítima é a chave e bem fácil de manejar por certo: é a contrição perfeita. Ela te abrirá, em cada dia e a cada momento, o Céu se o fechaste com o ferrolho do pecado mortal; e sobretudo se, no fim da tua vida, como pode suceder, não tiveres nem puderes ter a teu lado o sacerdote, que é o depositário das chaves da divina misericórdia, a contrição perfeita será a última e suprema chave com que, ajudado da graça de Deus, poderás franquear-te o Céu. Porém, para isso, é preciso que te acostumes a manejá-la em vida.
Pela contrição perfeita, estão salvas no Céu inumeráveis almas que, de outro modo, se teriam perdido para sempre. Já vês, pois, que é importante, e sumamente importante, o que te recomendo neste livrinho. Por isso, dizia o douto e piedoso cardeal Franzelin: "Se eu pudesse percorrer os campos pregando a palavra divina, nenhuma outra coisa pregaria com mais freqüência do que a contrição perfeita".
Mais adiante, no capítulo V, te direi como vim a escrever este livrinho e a percorrer assim os campos pregando a contrição perfeita. Deus Nosso Senhor, por seu amor e misericórdia, te assista com sua graça para que o compreendas, e, sobretudo, para que o pratiques, que é o que importa, conforme a sua doutrina.
Posto isto, começo em nome do Senhor.


I
Que é a contrição perfeita?

Contrição é uma dor da alma e uma detestação dos pecados cometidos. Deve acompanhá-la o propósito, quer dizer, uma firme vontade de emendar a vida e de não mais pecar. Para que a contrição seja legítima, deve ser interna e estar na alma, isto é‚ que não seja uma mera expressão feita com os lábios e sem reflexão: isto seria apenas contrição de boca.
Não é necessário manifestar exteriormente a contrição interna por meio de suspiros, lágrimas, etc.: tudo isto pode ser sinal de contrição, não é, porém, sua essência. A essência da contrição está na alma, na vontade, em afastar-se deveras do pecado e converter-se para Deus.
Além disto, a contrição deve ser geral, quer dizer, deve estender-se a todos os pecados cometidos ou, pelo menos, a todos os mortais. Deve, finalmente, ser sobrenatural e não meramente natural, pois esta nada aproveita.
Segue-se que a contrição, como todo o bem, deve proceder de Deus e da sua graça, e, com a graça de Deus, desenvolver-se na alma. Porém, não tenhas receio; basta que a peças, basta que tenhas boa vontade e te arrependas por algum motivo legítimo, sobrenatural, e Deus te dará a graça necessária.
Se o motivo se funda na natureza ou somente na razão (por exemplo, nos danos temporais, na vergonha, doença, etc.), é muito fácil que a dor seja puramente natural e sem mérito; porém, se o motivo da contrição é alguma verdade da Fé, por exemplo: o inferno, o purgatório, o céu, Deus, etc., então a contrição é legítima, sobrenatural.
E esta contrição legítima e sobrenatural pode, por sua vez, ser de duas classes: perfeita e imperfeita; e com isto temos chegado a nossa matéria da contrição perfeita.
Em poucas palavras, contrição perfeita é a contrição que procede de amor; imperfeita, a que procede do temor de Deus.
É contrição perfeita quando procede de amor perfeito a Deus. Pois bem, o nosso amor a Deus é perfeito quando o amamos porque Ele é em Si infinitamente perfeito, formoso e bom (amor de benevolência), e porque nos mostrou de uma maneira tão admirável o seu amor (amor de agradecimento).
É imperfeito o amor de Deus quando o amamos porque esperamos alguma coisa dEle. De modo que, com o amor imperfeito, pensamos sobretudo nos dons; com o perfeito, na bondade do dador; com o amor imperfeito, amamos mais os dons; com o perfeito amamos mais o dador, e isto não tanto pelos seus dons como pelo amor e bondade que nos dons se manifesta.
Do amor nasce a contrição. Será, pois, perfeita a contrição se nos arrependermos dos pecados por amor perfeito de Deus, quer seja de benevolência quer de agradecimento. Será imperfeita se nos arrependermos dos pecados por temor de Deus, porque pelo pecado perdemos a recompensa de Deus, o Céu, e merecemos seu castigo, o inferno ou o purgatório.
Na contrição imperfeita, fixamo-nos principalmente em nós e nas desgraças que, segundo a Fé nos ensina, nos acarretou o pecado. Na contrição perfeita, fixamo-nos sobretudo em Deus, na sua grandeza, na sua formosura, amor e bondade, vendo quanto o pecado O ofende, e que foi o pecado que Lhe ocasionou tantos sofrimentos e dores para nos redimir. Na contrição perfeita, não queremos unicamente o nosso bem, senão o bem de Deus.
Com um exemplo o verás melhor. Quando São Pedro negou o Divino Salvador, saiu fora e "chorou amargamente" (I Lc 22,62). — Por que chora São Pedro? É, porventura, pensando na vergonha que vai ter diante dos outros apóstolos? Se assim fosse, a sua dor teria sido puramente natural e sem mérito. É porque receia que seu Divino Mestre lhe tire, como ele merece, o cargo de Apóstolo e Superior e o expulse do seu reino? Então seria boa contrição, mas somente imperfeita. Mas, não; Pedro arrepende-se e chora, antes de tudo, porque ofendeu a seu amado Mestre, tão bom, tão santo, tão digno de ser amado e por ser tão desagradecido ao seu imenso amor por ele. Tem, pois, verdadeira e perfeita contrição.
Agora dize-me: tens tu também, cristão de minha alma, algum fundamento, algum motivo, parecido com o de São Pedro, para te arrependeres dos teus pecados por amor, e por amor perfeito e agradecido? Sim, certamente, pois os benefícios que Deus te tem feito são mais que os cabelos da tua cabeça, e, considerando-os, podes dizer, em cada um deles, o que dizia São João: "Amemos a Deus já que Ele nos amou primeiro" (I Jo 4,19).


Ah-E como te amou?


"Com amor eterno te amei — disse Ele — e me compadeci de ti e te atrai a mim" (Jer 31,3).
Sim, com amor eterno te amou. Desde toda a eternidade, desde quando ainda não havia nem um átomo de ti sobre a terra, te olhou com aqueles seus olhos amorosos e que tudo penetram, e te preparou alma e corpo, céu e terra, com o amor com que uma mãe prepara todo o necessário para o filhinho que ainda não nasceu. Ele deu-te a saúde e a vida, Ele te deu e te dá, em cada dia, todos os bens naturais. Consideração esta que até aos pagãos pode fazê-los chegar ao conhecimento e amor perfeito de Deus; quanto mais a ti, cristão, que conheces outro gênero muito diferente de amor e de bondade, o amor e bondade sobrenatural de Deus para contigo; porque Deus se compadeceu de ti; e quando, com todo o gênero humano, estavas condenado pela culpa original, Deus enviou o seu Unigênito Filho, e Ele se fez teu Salvador e te remiu com seu sangue, morrendo na Cruz. E em ti pensava com entranhado amor quando agonizava no horto das Oliveiras, e quando derramava o seu sangue com os açoites e os espinhos, e quando subia arrastando a pesada Cruz pelo longo e áspero caminho do Calvário; e quando, cravado nela, se desfazia em sangue entre indizíveis tormentos. Em ti pensava com entranhado amor, como se tu foras o único homem da terra.
Que tens a concluir daqui? "Amemos a Deus já que Ele nos amou primeiro" (I Jo 4,19).
E Deus te atraiu a Ele pelo batismo, graça capital e primeira da tua vida, e pela Igreja, em cujo seio foste então admitido. Quantos há que, só a força de trabalhos e canseiras, conseguem encontrar a verdadeira Fé, e a ti te a ofereceu Deus desde o berço, por puro amor. Atraiu-te a Ele e te atrai sempre pelos sacramentos e pelas inumeráveis graças interiores e exteriores de que te enche todos os dias, pois, em verdade, estás nadando, como em imenso mar, na bondade e amor de Deus. E este amor, quer ainda coroá-lo colocando-te consigo no Céu e fazendo-te eternamente feliz. Que lhe deves por tanto amor? Não é verdade que deves corresponder a ele? Amemos também a Deus já que Ele nos amou primeiro.
Pois, vamos a contas e dize-me: Como tens pago a Deus, tão bom e amoroso, o seu amor e bondade para contigo? Dir-me-ás, sem dúvida, que com ingratidão e pecados. E pesa-te essa ingratidão? Sem dúvida que sim e queres ressarcir a tua pesada ingratidão, amando quanto possas tão grande e amoroso benfeitor. Pois, olha, se assim é, já tens contrição perfeita, contrição de amor de Deus. Para facilitar, chama-se a esta contrição de amor de Deus, contrição de amor ou de caridade.
Na mesma contrição de caridade, há uma mais levantada, que é quando alguém ama a Deus porque Ele é em si infinitamente formoso, glorioso, perfeito e digno de amor, prescindindo do seu amor e misericórdia para conosco. Há estrelas — e com esta comparação julgo que entenderás melhor — que, por estarem muito longe de nós, não as podemos distinguir, e, contudo, são tão grandes e formosas como o sol, que tão prodigamente nos dá o calor e a vida. Pois assim, ainda quando o homem não tivesse visto nem gozado nunca do amor de Deus, eterna estrela do céu, ainda quando Deus não tivesse criado o mundo nem criatura alguma, seria apesar disso grande, formoso, glorioso e digno de ser amado, porque é em si mesmo e para si, o bem mais excelente, o mais perfeito e digno de amor. Isto e não outra coisa quer dizer essa expressão que, mais de uma vez, terás encontrado nos devocionários e nas fórmulas do ato de contrição e te terá parecido talvez algum tanto obscura.
Detém-te, pois, agora e contempla o amor de Deus; contempla-o, sobretudo, nos amargos sofrimentos do Salvador, a cuja luz o compreenderás tão facilmente como facilmente te arrebatará o coração.
Eis aqui o modo de alcançar praticamente a contrição perfeita.


II
Como se excita a contrição perfeita?

Hás de pressupor que a contrição perfeita é graça e grande graça do amor e misericórdia de Deus; e, se assim é, hás, portanto, de pedi-la com instância. Porém, não te contentes com fazê-lo somente quanto trates de excitar a contrição, porque o desejo de alcançá-la deve ser um dos mais ardentes anseios de tua alma. Pede-a, pois, dizendo: Senhor, dai-me a graça do perfeito arrependimento, da perfeita contrição dos meus pecados. E Deus não te faltará com a sua graça, se tiveres boa vontade.
Posto isto, repara como poderás facilmente conseguir a contrição perfeita.
Põe-te diante de um crucifixo, na igreja ou na casa de tua habitação, ou senão imagina que o tens diante de ti, e, chorando de compaixão à vista das feridas do Senhor, pensa uns momentos com fervor: Quem é este que está pendente da Cruz e sofrendo nela? — É Jesus, meu Deus e Salvador. Que sofre? — As mais terríveis dores no corpo, tem-no ensangüentado e coberto de feridas; a alma, tem-na lacerada pelas dores e afrontas. Por que sofre tudo isso? — Pelos pecados dos homens e... também pelos meus pecados; em meio de suas amarguradas dores, também pensa em mim, também sofre por mim, também quer expiar os meus pecados. — Entretanto, deixa que o sangue redentor do Salvador, quente ainda, caia sobre ti, gota a gota, e pergunta a ti mesmo como tens correspondido ao teu Salvador, tão atormentado por ti.
Pensa um momento, recorda teus pecados, e esquece-te, se quiseres, do Céu, do inferno, e arrepende-te principalmente porque são eles que a tão miserando estado reduziram o teu Salvador; promete-lhe que não tornarás a crucificá-Lo com mais pecados e, por fim, reza, pausadamente e com fervor, acompanhando com sentimento interno, as palavras, a fórmula da contrição.
Esta oração ou fórmula pode ser diversa e ainda pode cada um servir-se para ela de suas próprias palavras. No fim do livrinho, encontrarás algumas; contudo juntarei aqui uma bastante vulgar:


Senhor meu e Deus meu: pesa-me, do mais íntimo do coração, de todos os pecados de minha vida, porque com eles tenho merecido que a vossa divina Justiça me castigasse na vida e na eternidade; porque tenho correspondido ao vosso amor com tanta ingratidão, sendo como sois o meu maior benfeitor; porém, sobretudo, porque com eles Vos tenho ofendido a Vós, meu bem supremo e digno de todo o amor. Proponho firmemente emendar-me e não mais pecar. Dai-me, meu Jesus, a graça para cumpri-lo. Amém.


Três porquês contém esta oração, e a cada porquê acompanha um motivo de contrição, primeiro da imperfeita, depois da perfeita; pois, da imperfeita se passa mais facilmente para a perfeita e é por isto conveniente unir as duas espécies de contrição. Em outras palavras, convém que se excite em primeiro lugar a contrição imperfeita e depois a perfeita. Dize, pois:


1 — "porque com eles, tenho merecido..." Isto é ainda contrição imperfeita.
2 — "porque tenho correspondido..." Esta vai já se aproximando da contrição perfeita e até se reduz a ela; porque, se deveras sinto ter correspondido com ingratidão e com pecados ao amor e bondade de Deus, necessariamente hei de querer ressarcir com amor esta ingratidão; e o sentir por amor a ofensa do benfeitor, a quem até agora se desconhecia, é já contrição perfeita, contrição de caridade para com Deus.
3 — "porém, sobretudo, porque com eles Vos tenho ofendido..." Se voltares a ler o capítulo I, entenderás o que isto significa e, entendendo-o, verás mais claramente expressado aqui o amor perfeito e a contrição perfeita. Para consegui-lo mais facilmente, podes acrescentar, mentalmente ou por palavras, o que segue: "porém, sobretudo, porque com eles Vos tenho ofendido a Vós, meu bem supremo e digno de todo o amor. Salvador meu que, por meus pecados, morrestes na Cruz".
Depois vem o propósito: "Proponho..."
— Porém, padre — dir-me-ás talvez — para outros, será isso muito fácil, mas para mim, é coisa muito difícil, quase impossível. — Parece-te isso? Pois não o julgues tal.


III
É difícil excitar a contrição perfeita?

Antes de tudo, é verdade que, para a contrição perfeita, se requer mais do que para a imperfeita, que é a de que se necessita para a Confissão.
Contudo, porém, ajudado com a graça de Deus, pode qualquer um alcançar a contrição perfeita, bastando que deveras a deseje, porque a verdadeira contrição está na vontade e não no sentimento. Tudo se reduz a termos o devido motivo de arrependimento, quer dizer, que nos arrependamos porque amamos a Deus sobre todas as coisas e, por seu amor, detestamos os nossos pecados; nisto, e não na duração ou intensidade da dor, está a contrição perfeita. Digo isto, porque muitas vezes se confunde a contrição perfeita com certa contrição que há, altíssima e sublime, não se advertindo que a contrição perfeita tem seus graus e degraus, e que, para que o seja, não é necessário que chegue à contrição altíssima e firmíssima de São Pedro, de Madalena, de São Luiz Gonzaga e de outros santos: muito bom seria isso, mas não é necessário; um grau mais baixo de contrição perfeita e verdadeira basta para perdoar os pecados.
Além disso, advertirás uma coisa, que me parece te animará e te dará confiança para poderes alcançar a contrição perfeita. Antes de Jesus Cristo, na Lei antiga, por espaço de 4.000 anos, foi a contrição perfeita o único meio que tiveram os homens para alcançarem o perdão dos pecados e entrarem no Céu. E hoje mesmo a milhões e milhões de pagãos e hereges que só e unicamente pela contrição perfeita, podem sair do pecado. Portanto, se é verdade, como é, que Deus não quer a morte do pecador, parece natural que não haja exigido para a contrição perfeita ato demasiadamente difícil, mas antes que esteja ao alcance de todos. Pois, se podem alcançar a perfeita contrição tantos e tantos que vivem e morrem afastados, é verdade que sem culpa sua, da corrente da graça e da Igreja Católica, ser-te-á isto a ti difícil, a ti, que tens a grande dita de ser cristão e católico, a ti, que tens muito mais graças e estás mais instruído do que eles?
E ainda te digo mais: muitas vezes, sem o saber ou sem o pensar, tens realmente contrição perfeita; quando, por exemplo, ouves piedosamente a santa Missa, quando fazes com devoção a Via-Sacra, quando meditas com fervor diante de uma imagem de Jesus crucificado ou do Sagrado Coração, ou assistes à pregação da palavra divina.
Além disso, muitas vezes pode-se exprimir com poucas palavras o amor mais ardente e a mais profunda contrição, atendendo só ao sentido e ao motivo (o amor de Deus). Por exemplo, com estas jaculatórias: "Deus meu e meu tudo!"; "Meu Jesus, misericórdia!"; "Ó meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas!"; "Meu Deus, compadecei-Vos de mim pecador!" E


"Pequei, já minha alma
Sua culpa confessa;
Mil vezes me pesa
De tanta maldade.
Mil vezes me pesa
De haver, obstinado,
Teu peito rasgado,
Ó suma Bondade!"
Finalmente, se tão soberanos efeitos obra Deus pela contrição perfeita, sinal é de que quer que a excitemos e de que Ele nos ajudará para consegui-la.
E que efeitos são estes que produz a contrição perfeita?


IV
Que efeitos produz a contrição perfeita?
 Efeitos verdadeiramente admiráveis!


Se és pecador, perdoa-te imediatamente os pecados e isto de cada vez e ainda antes de receberes o sacramento da Confissão; necessário é, porém, que tenhas vontade de confessá-los mais tarde (vontade esta que já está incluída na contrição perfeita). E este efeito é produzido pela contrição perfeita e verdadeira não só em perigo de morte, mas sempre e quando a excitamos no coração; de modo que o pecador, ao mesmo tempo que lhe são remitidas as penas do inferno, recobra os méritos passados e, de inimigo de Deus, se faz seu filho e herdeiro do Céu.
Se és justo, a contrição perfeita assegura-te e aumenta-te o estado de graça, apaga-te os pecados veniais que, pelo ato de contrição de caridade, detestaste; perdoa-te, sobretudo, as penas dos pecados, firmando e robustecendo-te no verdadeiro e sólido amor de Deus.
Tais são as maravilhas que o amor e a misericórdia de Deus obram na alma do cristão pela contrição perfeita.
Tão grandes são que, talvez, te pareçam incríveis; tratando-se do perigo de morte, já terás ouvido que se devem pedir a contrição e a dor; mas que também, em tempo de saúde e em qualquer tempo, a contrição perfeita obre tais maravilhas, mal te atreverás a acreditá-lo.

Será, pois, certa e segura esta doutrina da contrição perfeita?
Digo-te que é tão firme e tão segura como a própria palavra de Deus.
No Concilio ecumênico de Trento, onde a Igreja declarou e explicou os principais ensinamentos divinos que já eram correntes nela e eram combatidos por muitos hereges, diz-se na Sessão 14, cap. 4: "A contrição perfeita, a contrição que procede do amor de Deus, justifica o homem e reconcilia-o com Deus ainda antes de receber o sacramento da Confissão".
Como o Concilio não diz que isto seja só em tempo de necessidade e em perigo de morte, segue-se que a contrição perfeita produz sempre este efeito. E, para o afirmar, apoia-se a Igreja na palavra e ensino de Jesus Cristo, que diz entre outras coisas: "Se alguém me ama (e isto só o faz o que tem verdadeira contrição no coração), meu Pai o amará e Nós viremos a ele e faremos nele morada" (I Jo 14,23).
Para que, porém, Deus possa habitar na alma, é preciso que o pecado tenha desaparecido; logo, o apagar o pecado é um dos efeitos da contrição perfeita, da contrição de caridade.
Assim também o tem declarado sempre a Igreja infalível, chegando a condenar como herege, Baio, por dizer o contrário.O mesmo ensinam os Santos Padres e Doutores sagrados sem exceção e o mesmo confirma a razão, porque se, como já disse, tão grandes efeitos produzia a verdadeira contrição no Antigo Testamento, quando ainda imperava a lei do temor, quanto maior produzirá no Novo, em que impera a lei do amor!

Dir-me-ás, talvez, porém, se a contrição perfeita destroi os pecados, a que vem confessá-los depois?
Sim, é verdade; a contrição perfeita faz o mesmo que a Confissão, faz com que desapareçam da alma os pecados; não o faz, porém, com independência do sacramento da Confissão, porque é necessário ter vontade de confessar mais tarde os pecados destruídos ou apagados pela contrição perfeita. E isto porque é lei de Jesus Cristo que se confessem todos os pecados, pelo menos todos os mortais, e esta lei, de forma alguma, se pode mudar. Verdade é que, se alguém não quisesse depois confessar os pecados que lhe foram perdoados pela contrição perfeita, não os contrairia novamente; mas é certo que perderia de novo o estado de graça, precisamente por faltar à obrigação de confessá-los.
— E devemos confessar os pecados logo que o possamos fazer depois da contrição de caridade?
— Em rigor, não é necessário; porém, de todo o coração, aconselho-te e recomendo-te que o faças; assim estarás mais seguro de ter alcançado o perdão e conseguirás, por sua vez, as grandes graças que traz consigo o sacramento da Confissão e que se chamam graças sacramentais.
Talvez que alguém, tentado pelo demônio, vendo os grandes efeitos da contrição perfeita, diga: "Pois se é tão fácil alcançar o perdão dos pecados com a contrição perfeita, já não preciso mais me confessar; peco quanto quiser, arrependo-me depois com contrição perfeita, e estou pronto. Não é assim?"
Não, de forma alguma; porque quem assim pensa não tem nem sombra de contrição. Não ama a Deus sobre todas as coisas logo que não queira em tudo e por tudo romper com o pecado mortal, nem trata seriamente de emendar a sua vida, coisa que tanto se requer para a Confissão como para a contrição perfeita; em uma palavra, falta-lhe boa vontade e, faltando-lhe esta, faltar-lhe-á a graça de Deus, sem a qual a contrição perfeita é absolutamente impossível.
Poderá enganar-se a si mesmo, jamais, porém, enganará a Deus Nosso Senhor. Aquele que tem contrição perfeita, está inteiramente resolvido a romper com o pecado mortal; receberá logo que possa e com mais fervor do que dantes, os santos sacramentos, e com a sua boa vontade, ajudada da graça de Deus, conservar-se-á livre de pecado e se firmará mais e mais no feliz estado de filho de Deus.
A quem, de modo especial, a contrição perfeita auxilia, é aos que leal e sinceramente querem adquirir e conservar o estado de graça e, sobretudo, aos que pecam por costume, isto é, aos que, ainda que tenham boa vontade, a força dos maus hábitos e a própria fraqueza os fazem cair de vez em quando; porém, de forma alguma, a contrição perfeita ajuda aos que se acolhem a ela para pecarem mais à vontade. E estes convertem o celestial remédio do perfeito arrependimento em narcótico fatal e em infernal veneno.
Não sejas, pois, destes, leitor amado; não consintas, incauto, que graça tão preciosa como a contrição perfeita te sirva para o mal, senão para o bem, já que tão grandes bens produz na alma do cristão.
— E que bens são esses que produz a contrição perfeita?


V
Por que é tão importante e
até necessária a contrição perfeita?

É importante na vida e na morte.

I — É importante na vida

Porque: que precioso não é o estado de graça!
A graça não adorna somente a alma, mas invade-a e penetra-a toda, e transforma-a em uma nova criatura, em filha de Deus e herdeira do céu. Além disso, faz com que todas as obras e trabalhos do cristão sejam meritórios para o Céu; a graça é a varinha mágica que tudo converte em ouro, porém em ouro de méritos celestiais. Pelo contrário, que triste é o estado do cristão que jaz em pecado! Todos os seus trabalhos, todas as suas orações, todas as suas boas obras ficam inúteis e sem mérito para o Céu; é inimigo de Deus e, no momento em que o tênue fio da vida se parta, cairá precipitado no inferno. Não será, pois, importante e necessário o estado de graça para o cristão?


Pois, se o perdeste, podes recuperá-lo, principalmente de duas maneiras:


1º Pela Confissão.
2º Pela contrição perfeita.


A Confissão é o meio adequado e ordinário para alcançar a graça santificante. Como este meio, porém, nem sempre está ao nosso alcance, Deus deu-nos outro extraordinário, que é a contrição perfeita.
Imagina que, um dia, tens a imensa desgraça de cometer um pecado mortal. Quando, passada a agitação do dia, vem o sossego da noite, a tua consciência angustiada levanta-se e clama com voz poderosa. — Confessar-se agora... não é possível. Como remediar este estado? Pois olha, Deus põe em tuas mãos a chave de ouro que te vai abrir as portas do Céu; arrepende-te de teus pecados por verdadeiro amor de Deus, protesta-lhe firmemente não tornar a cometê-los, promete confessá-los quanto antes, e podes acreditar que estás reconciliado com Deus; deita-te tranqüilo.
Porém, se o cristão não conhece nem pratica a contrição perfeita, que triste estado o da alma! Em pecado mortal se deita e se levanta, e assim vive dois, três, quatro meses e mais, até a Confissão seguinte.
E talvez que, neste estado, continue por anos inteiros, sem que a profunda noite do pecado seja interrompida, nem um momento sequer, na sua alma pelos raios do sol da graça depois da Confissão. Triste estado! Viver quase sempre em pecado, inimigo de Deus, sem mérito para o Céu e em perigo de eterna condenação!
Mais; quando alguém, antes de receber um sacramento, por exemplo, o da Confirmação, o do Matrimonio, se lembra de um pecado grave não perdoado, pode, pela contrição perfeita, fazer-se digno de receber o sacramento. Somente para a Comunhão, isso não basta; é necessária a Confissão.

* * *

Também para o cristão que está em estado de graça, é importante o uso freqüente da contrição perfeita.
Antes de tudo, nunca podemos estar completamente seguros de que estamos em estado de graça. Porém, esta segurança aumenta e se confirma com cada ato de verdadeira contrição perfeita.
Sucede, além disso, que alguém tenha dúvida sobre se consentiu em alguma tentação; estas dúvidas acovardam e desalentam a alma no caminho da virtude. Que há a fazer nestes casos? Examinar se consentimos ou não? Isso de nada aproveita. Excita-te à contrição perfeita e fica tranqüilo.
Porém, ainda que tivéssemos toda a certeza possível de que estamos em graça, que preciosa não é a contrição perfeita!
Por cada ato de contrição perfeita, aumentamos este estado de graça na alma, e cada grau de graça vale mais do que todas as riquezas do mundo.
Por cada ato de contrição perfeita e caridade, destroem-se os pecados veniais e as faltas que mancham a alma, e esta fica cada vez mais formosa diante de Deus.
Por cada ato de contrição perfeita, são perdoadas as penas temporais dos pecados (*).
(*) Quer dizer que se perdoam sempre algumas penas e até todas, se o ato for mui intenso (N. do T.).
Recorda-te do que o Senhor disse à Madalena: "Perdoados lhe são muitos pecados, porque amou muito" (Lc 7,47). E se tanto apreciamos, e com razão, as indulgências, as boas obras, as esmolas, incluamos entre estas a caridade, a rainha das virtudes.
Por cada ato de contrição perfeita vai a alma confirmando-se mais e mais no bem e robustecendo-se contra o mal, de modo que, com razão, pode esperar a suprema graça da perseverança final. Já vês, pois, que é importante a contrição perfeita na vida. Porém, de modo particular

II — É importante na morte

Sobretudo em perigo de morte repentina.


Houve um grande incêndio numa cidade, e neste pereceram centenas de pessoas. Entre muitas que gemiam no pátio de uma casa, via-se um menino de doze anos que, de joelhos, pedia em voz alta a graça da contrição; explicou depois porque o fazia e suplicou que orassem com ele em voz alta.
Talvez que, por seu intermédio, muitos daqueles infelizes se salvassem para sempre.
Perigos como este sem conta te cercam e, quando menos o penses, podes ser vítima de uma desgraça repentina: podes, por exemplo, cair de uma árvore; podes ser atropelado por um carro na rua; podes ser surpreendido de noite, pelo fogo, na tua habitação; podes colocar mal o pé em uma escada; pode ser que, enquanto trabalhas, te falte repentinamente os sentidos e caias... levam-te moribundo à casa, vão a correr chamar o sacerdote; este, porém, tarda em chegar, e urge tanto!... Que fazer? Excita-te em seguida à contrição perfeita, arrepende-te por amor e gratidão para com Deus, e Jesus Cristo paciente salvar-te-á por toda a eternidade; a contrição perfeita terá sido para ti a chave do Céu no último momento e no último e supremo transe para a alma e para o corpo.
Com isto, não desejo que alguém se aventure a deixar tudo para o último momento, à mercê de um ato de contrição perfeita, julgando ficar já por isso livre de pecado, pois é muito duvidoso que a contrição perfeita possa servir aos que têm pecado à sua sombra. O que deixo dito vale, antes de tudo e sobretudo, para os que têm boa vontade.


       Porém, haverá tempo — dir-me-ás — em tais circunstâncias, para fazer um ato de contrição perfeita?
Com a ajuda de Deus, sim; porque, para a contrição perfeita não se requer muito tempo, sobretudo quando antes, em tempo de saúde, nos temos exercitado nela; em um momento a podemos excitar e penetrar na alma. E como, em casos tão extraordinários, tem mais eficácia a graça de Deus, e o espírito, mais atividade no transe tremendo da morte, dos momentos se fazem horas. Lembra-te de que falo por experiência própria.
Uma vez, a 20 de julho de 1886, estive em grande e terrível perigo de morte, seria coisa de oito ou dez segundos, o espaço para meio Pai-Nosso. Pois, em tão curto espaço de tempo, mil pensamentos cruzaram-se em minha mente; a minha vida inteira passou diante de minha alma, com rapidez incrível, e, atrás dela, o que seria de mim depois da minha morte; tudo isto, como disse, num espaço de tempo insignificante, o suficiente para meio Pai-Nosso. Por dita minha, porém, e grande favor de Deus, a quem rendo graças, não foi aquele momento para morte, mas sim para vida; — do contrário, não teria podido escrever a Chave de ouro. Pois, a primeira coisa que fiz, em tão terrível momento, foi o que, segundo o Catecismo, deve fazer todo o cristão em perigo de morte: excitar-se à contrição e recorrer a Deus pedindo-a e implorando-a a seu favor. E a verdade é que, naquela ocasião, creio que aprendi a amar e apreciar o valor da contrição perfeita; desde então tenho difundido, quanto me tem sido possível, o seu conhecimento e estima.
E esta misericórdia, que podes exercitar na tua alma no último momento, podes exercitá-la também com os 



demais cristãos, teus irmãos.


E quão triste é que, em tão apurado transe, não seja isto melhor compreendido!
Acode muita gente, choram e gritam desordenadamente, e, sem saber que fazer, correm à procura do medico e do sacerdote, trazem todos os remédios que têm em casa e, entretanto, o enfermo agoniza, e... naqueles breves mas preciosos momentos, talvez não haja quem se compadeça da sua alma imortal e lhe proponha que faça um ato de contrição perfeita e o salve para sempre.
Se te apresentar ocasião, vai com sossego e tranqüilidade para o lado do moribundo ferido ou enfermo; se te for possível, põe-lhe o Crucifixo diante dos olhos e, com voz firme mas tranqüila, pede-lhe que pense e repita com o coração o que tu vais rezar; e, feito isto, vai dizendo compassada e claramente o ato de contrição, ainda que te pareça que ele nada ouve nem entende. Com isto, terás feito uma obra sumamente boa, e o moribundo te agradecerá eternamente no Céu. Sim, até mesmo a um herege, podes ajudar desta maneira em seus últimos momentos; não lhe fales, se queres, de Confissão, porém excita-o a que faça um ato de amor de Deus e de Jesus Crucificado e dize-lhe compassadamente o ato de contrição.


VI
Quando se deve excitar a contrição perfeita?

1. Se, com fidelidade e bom desejo, me tens seguido até aqui, cristão leitor, deixa que, olhando-te afetuosamente e apertando-te a mão, te diga de todo o coração e com a maior insistência: dá este prazer a Deus e à tua alma: fase devotadamente todas as noites, com tuas orações, um ato de contrição perfeita. Não deixes passar noite alguma sem exame de consciência e contrição, como não deixes passar manhã alguma sem purificar a intenção. Não pecarás, é claro, se o deixares de fazer alguma vez; porém tem por bom e saudável o conselho que te dou.
E não me digas que isso de exame de consciência e contrição é coisa própria de sacerdotes e homens perfeitos e não para ti; não te escuses com o "não há tempo"; "está a gente tão cansado quando chega a noite..."
Quanto tempo julgas que é necessário? Meia hora? Não. Um quarto de hora? Também não; alguns poucos minutos bastam. Não costumas recitar algumas orações antes de te deitares? Pois, em seguida à tua pequena oração, pensa uns momentos nas faltas e pecados do dia que acaba de passar, e reza, pausadamente e com fervor, diante do Crucifixo, o ato de contrição. Depois podes recolher-te tranqüilo. Deste ao Senhor as boas noites, e ele te respondeu: "Boa noite, filho". Ele perdoou-te misericordiosamente os teus pecados. Que te parece? Fá-lo desde esta noite e jamais te arrependerás.

2. Se, nesta vida, tiveres a imensa desgraça de cometeres um pecado mortal, não permaneças mergulhado em tão grande miséria; levanta-te pela contrição perfeita, levanta-te imediatamente, ou, o mais tarde, logo que faças as tuas orações da noite; depois não demores muito em confessar-te.

3. Finalmente, cristão da minha alma, mais tarde ou mais cedo, terás que morrer, e se, o que não te desejo, a morte te colhesse de improviso, já sabes onde está o remédio, já sabes onde está a chave do Céu.
Chama imediatamente por Deus com íntima e perfeita contrição, e, se em vida te exercitares nela gostosa e devidamente, não te faltarão então tempo, vontade e graça de Deus para teres firme contrição perfeita, e a contrição perfeita te salvará.

4. Porém, se antes de morrer, tens tempo para prevenir-te e preparar-te para o caminho da eternidade, que a última coisa que na terra penses e faças, com conhecimento, seja um ato de entranhado amor de Deus, teu Criador, teu Redentor, Salvador e Juiz; um ato de sincera e perfeita contrição de todos os pecados da tua vida. Feito isto, lança-te com confiança nos braços da misericórdia divina e Deus será para ti bondoso Juiz.
Com isto, me despeço de ti, amado leitor; vê e faze o que neste livrinho tens lido. Ama e pratica a contrição perfeita, meio esplêndido de graça que a divina misericórdia põe em tuas mãos para saíres do pecado mortal em qualquer momento, e não só em perigo de morte; meio fácil, que tão grandes efeitos produz; meio supremo e único que, em caso de necessidade, salvará a tua alma; fonte, enfim, de graças na vida e na morte verdadeira chave de ouro do Céu.